O Supremo Tribunal Federal do Brasil recentemente admitiu que a Fundação Wikimedia participe como amicus curiae (“amigo da corte”) em discussão sobre a constitucionalidade do regime de responsabilidade civil das plataformas digitais. A decisão do Tribunal pode ter impactos negativos no modelo de moderação de conteúdo comunitário que é fundamental aos projetos da Wikimedia. Paralelamente, um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional também propõe mudanças no regime jurídico da responsabilização de plataformas.
Quase 10 anos após a promulgação do Marco Civil da Internet no Brasil (conhecido oficialmente como Lei nº 12.965/2014), o Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte do país, analisará a constitucionalidade do regime jurídico de responsabilidade civil das plataformas digitais que hospedam conteúdo publicado por terceiros.
O Marco Civil da Internet é uma lei emblemática que disciplina o uso da internet no Brasil estabelecendo garantias importantes como a neutralidade da rede, imunidades para provedores de serviços na internet e o exercício dos direitos civis on-line. A norma sob análise é o artigo 19 da lei, que confere às plataformas digitais (“intermediários” ou “provedores de aplicação”, assim chamados na lei) certo grau de proteção em relação ao conteúdo postado pelos seus usuários. Este dispositivo assegura que, como regra geral, as plataformas somente são passíveis de responsabilização ao não cumprirem com uma ordem judicial que exija a exclusão de determinado conteúdo. Se o artigo for julgado inconstitucional, a responsabilização das plataformas digitais pelo conteúdo gerado por terceiros poderá ser desencadeada mais facilmente.
A análise do dispositivo pelo Supremo Tribunal Federal foi motivada por duas ações judiciais, movidas contra o Facebook Brasil e o Google Brasil, referentes a pedidos de remoção de conteúdo. Os processos chegaram à instância superior em 2017 e estavam pautados para serem discutidos em 2020, o que não ocorreu devido à pandemia de COVID-19. No entanto, os ataques antidemocráticos ocorridos em Brasília em 8 de janeiro de 2023 motivaram os órgãos públicos a aumentar os esforços para conter a disseminação de desinformação e de conteúdo extremista on-line. Diante desse cenário, o Supremo Tribunal Federal avaliará se o modelo jurídico de responsabilidade civil das plataformas se coaduna com os direitos fundamentais consagrados na Constituição brasileira.
A Fundação Wikimedia se pauta por sólidos compromissos de direitos humanos e de forma alguma aprova atos de violência contra indivíduos ou instituições, privadas ou públicas. No entanto, pedimos cautela no exame de normas que abrangem todos os tipos de plataformas da internet e advertimos fortemente contra abordagens de “tamanho único”. Nesse sentido, a Fundação aproveitou a oportunidade para apresentar seu posicionamento na condição de amicus curiae, com o objetivo de ressaltar modelos alternativos de moderação de conteúdo e de governança de plataformas.
Em março de 2023, o STF realizou uma audiência pública em que a Fundação destacou a singularidade do modelo descentralizado de governança comunitária que figura no cerne dos projetos da Wikimedia. Esse modelo, que capacita voluntários de todo o mundo a criar, compartilhar e curar conhecimento ativamente, é possibilitado por disposições legais que conferem proteção às plataformas on-line. Sem essas salvaguardas, as plataformas podem ser forçadas a centralizar todas as decisões relacionadas à criação e moderação de conteúdo no intuito de mitigar riscos jurídicos.
Se não houver qualquer tipo de imunidade para provedores de aplicação na internet quanto ao conteúdo gerado pelos seus usuários, as plataformas poderão estar sujeitas a um grande volume de ações judiciais buscando indenização. Para plataformas sem fins lucrativos como a Fundação, as consequências podem ser graves e representar uma ameaça existencial ao modelo de projetos da Wikimedia, que são administrados por voluntários. Enquanto a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet é analisada pelo STF, a Fundação pede que direitos individuais sejam devidamente ponderados com o direito à liberdade de expressão e informação, o que é imprescindível para garantir que projetos colaborativos de interesse público não sejam indevidamente prejudicados.
O caso deverá ser julgado nos próximos meses. À medida que as discussões judiciais continuarem avançando, a Fundação seguirá defendendo a proteção de projetos de conhecimento livre e aberto.
Além do caso judicial, um projeto de lei também poderá modificar o regime de responsabilidade civil de intermediários
Enquanto se aguarda o julgamento do STF, a proposta que pretende instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (PL 2630) — conhecida coloquialmente como “PL das Fake News” — ganhou urgência no Congresso Nacional. Esta iniciativa legislativa, que visa aumentar a transparência e a responsabilidade das plataformas de redes sociais, ferramentas de busca e serviços de mensageria instantânea no Brasil, está em discussão desde 2020, tendo sido apresentada como resposta à onda de desinformação que maculou as eleições gerais do país em 2018. O projeto de lei recuperou o fôlego devido a vários eventos este ano que trouxeram de volta ao centro do debate público o papel crucial das plataformas digitais quanto à moderação de conteúdo nocivo. No entanto, a discussão deste projeto de lei está ocorrendo no contexto de acirrado enfrentamento político no Brasil, onde várias partes interessadas estão utilizando táticas altamente contestadas resultando em embates acalorados.
Se o projeto de lei for aprovado, grandes plataformas com fins lucrativos seriam obrigadas a: realizar avaliações de risco e mitigação; tomar medidas para prevenir e mitigar a disseminação de conteúdos ilegais; estabelecer um devido processo na moderação do conteúdo; aplicar um protocolo de segurança; publicar relatórios de transparência; e, realizar auditorias externas para avaliar o cumprimento da lei, entre outros. Embora ainda não haja definição quanto ao texto final, o projeto de lei tem o potencial de modificar as proteções de responsabilidade do intermediário estabelecidas no Marco Civil da Internet. No entanto, resta saber qual será o resultado desse projeto de lei, dado o contexto político polêmico em que o debate está ocorrendo.
O que parece certo é que, seja no âmbito legislativo ou judicial, o modelo de responsabilidade civil das plataformas digitais no Brasil sofrerá alterações. Esperamos que as mudanças não tenham efeitos adversos no modelo e nos projetos da Wikimedia. Estamos confiantes de que as salvaguardas defendidas pelo Wiki Movimento Brasil – com o apoio da Fundação – e incluídas no texto do projeto de lei ajudarão a continuar protegendo o modelo comunitário de governança e de moderação de conteúdo.
A Fundação continuará monitorando os desenvolvimentos no Brasil e, oportunamente, compartilhará atualizações por meio de nova postagem de blog no Diff.
—Daniella Ferrari, Fellow de Privacidade para América Latina & Caribe, e Amalia Toledo, Especialista Líder em Políticas Públicas para América Latina & Caribe, 20 June 2023
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