Há décadas, a Wikipédia se tornou um dos grandes “oráculos da internet”, sendo um dos 10 sites mais acessados no Brasil, de acordo com levantamentos da Alexa Ranking. Baseada nos conceitos de ciência aberta e construção colaborativa do conhecimento, a enciclopédia online permite que, na prática, qualquer internauta possa produzir e editar seus textos.
Contudo, essa possibilidade de agregação aos conteúdos publicados pode gerar algumas distorções, desconfianças e o uso enviesado da Wikipédia. “Esses momentos em que a quantidade de conhecimento disponível se tornou subitamente muito maior, eles são momentos de muita incerteza e de muita insegurança”, reflete Mariana.
Uma dessas incertezas diz respeito ao viés de gênero que está presente no site. Em 2021, em meio às comemorações dos 20 anos da Wikipédia em língua portuguesa, uma pesquisa realizada pela plataforma apontou que apenas cerca de 11% das pessoas que editavam na enciclopédia virtual eram mulheres. Além disso, somente cerca de 20% das 265.764 biografias disponíveis na Wikipédia em português são sobre mulheres, de acordo a Humaniki – projeto que compila um conjunto de dados abertos sobre humanos em todos os projetos da Wikimedia. “Para mim, parte da explicação dessa assimetria tão grande na Wikipédia tem a ver com a assimetria histórica das profissões ligadas à tecnologia”, explica Mariana.
Interessada pela História Intelectual, pela História do Direito e pela História das Relações de Gênero, Mariana é Coordenadora Executiva do Mais Mulheres em Teoria da História na Wiki no ano de 2024. O evento será realizado de 13 de junho a 25 de julho deste ano e vai contar com webinar, minicurso virtual e oficinas, além de uma editatona presencial em Belo Horizonte. Saiba mais clicando aqui.
A iniciativa faz parte do Mais Teoria da História na Wiki, um projeto de História Pública com apoio do Café História voltado para a ampliação do debate de temas relacionados aos estudos de gênero, sexualidade, raça e epistemologias do Sul Global. “A grande preocupação de fundo é qualificar o conteúdo da Wikipédia. Mas mais do que isso, é trazer figuras que se tornem, de fato, editoras e editores, e que ocupem esse espaço, que é um espaço, não só de divulgação, mas também de disputa pela História, de disputa pela memória”, afirma.
Mariana de Moraes Silveira é professora adjunta de Teoria da História e História da Historiografia e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde fez a graduação e o mestrado. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, ainda é graduada em Direito pelas Faculdades Milton Campos. Também se dedica aos estudos da historiografia brasileira e argentina, história dos livros, das edições e da leitura.
Ainda existe muita resistência dentro da academia em relação à Wikipédia?
Eu acho que entre historiadores e historiadoras, em geral, a visão sobre a Wikipédia é muito negativa. Um dos propósitos do projeto “Mais Teoria da História na Wiki” é justamente colocar em xeque esse preconceito. É preciso entender a Wikipédia tanto como um espaço de divulgação, quanto como um espaço de ensino e aprendizado. Eu acho que, em geral, vivemos uma contradição, porque existe essa espécie de senso comum acadêmico de que a Wikipédia é péssima e não é confiável, ao mesmo tempo que usamos a Wikipédia o tempo inteiro, principalmente para consultar informações factuais básicas. E para esse tipo de pesquisa, em geral, a Wikipédia é bastante confiável. É claro que isso tem assimetrias. Normalmente os textos mais confiáveis são aqueles mais antigos que já passaram por um longo processo de edição.
Quais assimetrias seriam essas?
Hoje, para fazer edições básicas na Wikipédia, já não é preciso saber sobre código-fonte, HTML, linguagens, formatação de sites e coisas do tipo. Então, o que acontece é que, historicamente, os editores da Wikipédia são muito majoritariamente homens brancos, cisgêneros, heterossexuais. Eu diria que existe uma especificidade na Wikipédia, e eu acho que nem sempre isso é dito suficientemente. As pessoas falam “ah, existe assimetria de gênero na Wikipédia”, “existe negacionismo”, “existe falseamento” porque isso existe isso na sociedade. Mas eu acho que não é tão direto nem tão simples assim. Na verdade, é até pior em um certo sentido, porque eu acho que existe uma assimetria extra, pelo fato de que normalmente as pessoas que editam na Wikipédia são pessoas que têm um certo conhecimento de tecnologia, pessoas que têm tempo e interesse para fazer essa edição. Outro problema bastante comum são os vandalismos em edições. Isso é uma questão contra qual a própria Fundação Wikimedia tem lutado.
Nós estamos passando por um processo de grande polarização ao nível mundial e esse fenômeno envolve os debates e usos de narrativas históricas. Nesse sentido, você vê a Wikipédia como um espaço de disputa ideológica?
Eu acho que a Wikipédia está em disputa e é um espaço de disputa. É curioso porque a Wikipédia, desde o começo, se pauta por uma certa flexibilidade das regras, mas ela tem os tais cinco pilares, que são diretrizes bastante gerais pelas quais o funcionamento da Wikipédia se rege. Um deles, que certamente é um dos que causa mais estranheza para nós que chegamos da academia para a Wikipédia, é o pilar da neutralidade do ponto de vista. A gente passa vários cursos de Teoria da História discutindo que não existe neutralidade. Mas a preocupação desse pilar da neutralidade do ponto de vista tem a ver, justamente, com que a Wikipédia seja o mais informativa possível, o que significa uma pluralidade de pontos de vista. Então, a Wikipédia é pautada por essa preocupação em trazer diferentes perspectivas sobre uma mesma questão. É claro que isso pode gerar tensões e situações um pouco delicadas em alguns momentos. Eu concordo plenamente que nós podemos e devemos ocupar um espaço como esse, porque se nós não o fizermos, outras pessoas vão fazer.
Existe algum controle ou priorização de informações nas edições dos verbetes da Wikipédia? Quais são as ferramentas e estratégias possíveis para dar mais confiabilidade ao conteúdo?
Em geral, fontes primárias não são boas fontes para Wikipédia, justamente pelo princípio da neutralidade do ponto de vista. Então, tudo aquilo produzido diretamente pela pessoa, sobretudo no caso de biografias, é considerado como opinião suspeita, digamos assim. Nós, historiadoras e historiadores, há muito tempo, fazemos coisas interessantíssimas com a História Oral, com entrevistas, mas isso não é, em regra, uma boa fonte para a Wikipédia. A não ser para informações factuais muito básicas, por exemplo, uma data de nascimento. Para nós acadêmicos também é bem curioso porque o currículo lattes não é considerado uma boa fonte para Wikipédia. Para que uma pessoa possa ter o verbete, existe o chamado princípio de notoriedade. Em uma definição geral, é necessário existirem pelo menos duas fontes publicadas independentes sobre aquela pessoa. Duas fontes secundárias, digamos assim.
Por exemplo, se vamos escrever biografias de historiadores, como minha turma está fazendo, o ideal é termos artigos, livros, dissertações, teses sobre aquela pessoa e não entrevistas, currículos lattes, coisas que ela própria escreveu. Existe essa hierarquia das fontes nesse sentido. E existe também todo um processo de monitoramento do conteúdo das páginas pela própria comunidade, em que editores experientes têm um peso maior. Edições consideradas nocivas podem, inclusive, levar à exclusão e ao bloqueio, em alguns casos automático, dos usuários. Sobretudo em verbetes com grande visibilidade, esse processo costuma garantir que vandalismos ou equívocos sejam rapidamente revertidos. Cada verbete tem uma página de discussão e um histórico de edições, que permitem acompanhar todas as alterações.
Sua turma está editando verbetes na Wikipédia?
Sim. A minha turma de Historiografia Contemporânea está trabalhando, com a consultoria do projeto, na redação de uma série de verbetes sobre historiadoras. Como eu estou organizando o evento “Mais Mulheres”, eu restringi a biografias de mulheres, de historiadoras. E é muito chocante. Eu pedi à turma para buscar, por conta própria, historiadoras que não estivessem na Wikipédia em português e, para citar apenas um exemplo que me chamou muito a atenção, a Angela de Castro Gomes não tem um verbete na Wikipédia. O que você tem que fazer, como historiadora, para ter um verbete na Wikipédia?
Mas e o critério de notoriedade?
Para alguns casos, existem critérios de notoriedade específicos. Tem um caso, que eu sempre acho muito expressivo, que é o da Marielle Franco. A Marielle foi ter um verbete na Wikipédia depois que ela foi assassinada – para ser mais precisa, um verbete havia sido criado antes, mas ele foi eliminado. A gente pode falar “nossa, que absurdo, as mulheres precisam estar mortas para estarem na Wikipédia”. Mas é que em relação a políticos, existe um critério de notoriedade específico, que em regra exclui integrantes de Legislativos municipais. E precisamos lembrar que a função de uma enciclopédia é ser uma obra de referência, um lugar de consulta rápida sobre temas de interesse geral. Se a gente pensar na própria extensão física das antigas enciclopédias, não era tudo que estava lá. Uma clareza que as pessoas em geral não têm é que a Wikimedia tem muitas outras frentes. Além da enciclopédia virtual, a parte mais conhecida desse projeto, a gente atua também no Wikidata, que é um grande banco de dados online que registra, no caso de pessoas, normalmente, informações básicas, como data de nascimento, profissão, e no Wikimedia Commons, que é um repositório de materiais multimídia. E o Wikidata é particularmente importante para a gente porque, em muitos casos, permite incluir figuras que não cumprem o critério de notoriedade da Wikipédia.
Há algumas décadas, as enciclopédias físicas tinham uma certa tutela do conhecimento. Por que a qualidade do conteúdo da Wikipédia não tem esse mesmo prestígio e confiabilidade dos usuários?
Eu acho que tem muitas camadas aí. A famosa enciclopédia de Diderot e D’Alembert, lá no século XVIII, foi uma tentativa de organizar o conhecimento para promover o esclarecimento da população em geral, numa situação em que cada vez mais se tinha consciência de que uma única pessoa não é capaz de deter todo o conhecimento de todas as áreas. Tem uma questão do próprio mercado editorial que legitimava essas enciclopédias, inclusive de uma certa capilaridade das enciclopédias para chegar às casas das pessoas, com vendedores batendo de porta em porta, sistemas de compras pelo correio… Elas tinham um comitê editorial, mas, na verdade, não havia controle acadêmico tão forte, tão direto. Tanto que muitas vezes saíam erros nas enciclopédias. E o erro que sai na enciclopédia tem grande potencial para ser reproduzido. Se algo saía errado na enciclopédia impressa, podia demorar muito tempo para ser corrigido. Em alguns casos, inclusive, saíam folhetinhos de erratas ou de acréscimos e atualizações para não refazer a enciclopédia inteira. Existia uma legitimação previamente dada para essa coleção, que até materialmente se apresenta como algo luxuoso, como algo que as famílias queriam exibir nas salas para mostrar que eram cultas e alinhadas ao conhecimento.
Por outro lado, existe essa desconfiança do que está na internet. Eu acho que o descrédito em relação à Wikipédia tem a ver com essa ansiedade mais geral em relação à internet e, talvez, inclusive, com certo preconceito aristocrático em relação ao conhecimento produzido por todos e por ninguém. Na Wikipédia a gente tem essa situação paradoxal: é mais fácil e você tem custos materiais menores para corrigir um erro que eventualmente saia, ou corrigir uma edição mal intencionada, que era menos comum nas enciclopédias, embora, certamente, acontecessem situações de enviesamento ideológico. Mas na Wikipédia o erro tem o potencial de se propagar mais e mais rapidamente.
Como a senhora avalia o uso crescente de inteligências artificiais, como o ChatGPT, como ferramenta de busca de conhecimento?
O ChatGPT é uma ferramenta de agregação da informação. O que a gente precisa entender é quais são os usos legítimos e quais são os usos nocivos do ChatGPT. Para questões linguísticas, por exemplo, o ChatGPT ajuda muito às vezes. Não é por acaso que ele funcione bem para tradução e revisão. Ele tende a funcionar melhor para coisas que são mais formuláicas, mais repetitivas. Mas é isso: é uma ferramenta. As pessoas têm que entender que o ChatGPT é uma ferramenta e não um oráculo. E que, inclusive, dependendo da situação, ele dá informações falsas. Eu fiz um experimento recentemente e pedi para ele, em inglês, me dar os principais temas da historiografia contemporânea. Ele me apresentou uma seleção bem razoável. Falou de História Ambiental, falou de estudos de gênero, falou de Humanidades Digitais, falou de História Global. Só que aí eu fui afunilando as questões e o momento em que ele bugou total e completamente foi quando eu pedi sugestão de cinco livros de Filosofia da História escritos por mulheres. Aí ele surtou. Ele começou a inventar coisas que não existiam, começou a me dar livros escritos por homens. Aí eu falava “tal autor é homem” ou “você está me indicando livros escritos por homens”. Aí ele começou a me responder, “apesar de não ser uma mulher, tem relevância para estudos feministas…” e tudo mais. Ou seja, quanto mais as questões vão ficando especializadas e complexas, menos preciso ele tende a ser. Eu acho que, muitas vezes, principalmente usuários que estão nas etapas iniciais da educação formal, eles não têm essa consciência. E acho que existe um grande problema que o ChatGPT, na verdade, ele trabalha na contramão do que seria, para mim, uma das funções mais importantes do processo educacional, que é despertar a curiosidade, despertar a capacidade de procurar informação e de confrontar diferentes fontes de informação. O que o Google de alguma forma traz. Embora o Google também seja regido por algoritmos, que a gente não entende muito bem, ele tende a trazer uma pluralidade mínima de respostas ou de caminhos. E o ChatGPT, em regra, não. Ele traz uma resposta fechada. Não dá simplesmente para transferir todo o trabalho intelectual para o ChatGPT.
Qual outra vantagem você destaca para o uso da Wikipédia por historiadoras e historiadores?
Eu acho que a Wikipédia talvez seja um dos poucos espaços que persistem na internet hoje que preservam um pouco daquela utopia do acesso livre ao conhecimento, da discussão aberta e horizontal. Eu diria que, apesar dos problemas e apesar dos usos mal-intencionados, apesar dos limites do conteúdo de muitos dos verbetes, a Wikipédia ainda é um bem público e um bem público global, de alguma maneira.
Como citar esta entrevista
SILVEIRA, Mariana de Morais. “Nós precisamos ocupar o espaço da Wikipédia”. Entrevista feita por Bruno Sousa Lima In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/nos-precisamos-ocupar-o-espaco-da-wikipedia/. Publicado em 8 maio de 2024. ISSN: 2674-5917.
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